Capítulo 02

          Infelizmente, Paul não podia ir comigo até o local do pronunciamento. Ele ia junto com seus colegas formandos. Ia ser um não tão longo, mas chato percurso até lá. Entramos em um carro preto com pequenas bandeiras dos EUA na frente. Obviamente tinha um motorista por trás daquelas escuras janelas, pois papai nunca dirigia. Duas viaturas policiais também iam nos acompanhar.
          Papai havia entrado no carro, sentou-se ao me lado e me lançou um olhar indagador para o meu lado. Quase que automaticamente, fiquei ereta e cruzei as pernas, olhando pela janela. Postura de uma dama, uma vozinha sussurrou para mim do fundo de minha cabeça.
          - Você está bem? – perguntou para mim.
          Levei um susto. Papai quase nunca fala comigo, ainda mais assim tão docemente!
          - Ah, é... Sim... Eu acho que sim – quase não conseguia responder.
          Papai sorriu para mim.
          - Não se preocupe – disse carinhosamente – só porque você vai fazer seu primeiro discurso em homenagem aos meninos, não é grande coisa!
          Ofeguei.
          Eu tinha esquecido completamente do discurso de homenagem!
          - O que foi? – perguntou papai – Você está bem, filha?
          - Sim, é claro, papai – respondi corando. Pensei um pouco e tive uma repentina ideia – Papai, por acaso você não teria uma cópia do discurso aqui com você?
          - Você não leu em casa, Kate?
          - Oh, li sim, papai, mas estou em dúvida em uma frase aí no meio – respondi com minha melhor cara de inocente.
          Ele tirou a folha de papel do bolso interno do casaco e, relutante, me entregou.
          Não é à toa que eu esqueci o discurso. Faltavam só cinco capítulos para eu terminar aquele livro! Eu precisava saber o final.
          Comecei a ler o discurso enquanto o carro dava partida. Agora eu tinha dez minutos para praticamente decorar o texto.

          “Eu, Kate Bone Johnsson...”

          Argh! De novo! Bonne tem dois “N”!

          “Eu, Kate BONNE Johnsson, filha de Gerard Brian Johnsson, estou aqui...”

          Oh, não. Lá no quarto já era ruim, dentro do carro com meu pai é péssimo! De novo fiquei tonta e já não me sentia mais dentro do carro.
          Ficou tudo escuro, o que era estranho. Nunca ficou assim. Então, do nada estava tudo queimando. Havia fogo para onde eu olhava. Gritos agonizantes. Ao longe surgem flechas no ar, até que uma dessas flechas me atinge e tudo volta a ficar escuro.
          Estava de volta no carro. Podia apostar que estava pálida. Sempre, minhas visões a mostravam um lugar belo, calmo e em paz. Ás vezes penas caindo suavemente no chão. Nunca foi assim tão intenso ou com um intervalo tão curto entre eles. Estava ficando pior.
          Meu antebraço, onde a flecha a havia atingido, estava latejando dolorosamente. Puxei a manga de meu casaco e olhei. Ali estava uma cicatriz que eu não tinha antes, o que tornou o flashback mais estranho ainda, se é que era possível.
          - Kate? O que foi? – a voz de papai surgiu em minha cabeça.
          Ordenei uma mentira rápido em minha cabeça.
          - Nada, papai. É só aquela maquiagem que usaram em mim novamente – disse – Aliás, o senhor poderia pedir a eles para trocarem a marca?
          - Claro, minha filha, depois eu vou falar com eles.
          - Obrigada, papai.
          Não era bem uma mentira. Aquela maquiagem que passaram em mim antes de sair estava me incomodando. Pinicava.
          O carro desacelerou e paramos em frente do Pavilhão de Eventos e mais uma vez fiquei assombrada. Passei mais tempo na visão do que pensei. Meu braço estava dolorido.
          Um empregado veio e abriu a porta do carro do lado de papai. Como fui ensinada, aguardei até que o empregado segurasse a porta para eu sair. Não temos o dever de agradecer, mas me sinto mal não fazendo isso. Ao sair do carro, sorri e murmurei um tímido “obrigada!” a ele. Ele respondeu apenas com um quase imperceptível movimento na cabeça. Congelei o sorriso em meu rosto e segui elegantemente atrás de papai.
          Já havia uma grande quantia de pessoas esperando o presidente realizar o pronunciamento. Deviam ser familiares, pois vi os pais de Paul ali.
          Subimos no palco, cumprimentamos o presidente e nos sentamos em nossos respectivos lugares. Achei melhor garantir e falei para papai:
          - Me avise na hora certa? – perguntei em voz baixa com um olhar suplicante.
          - Claro – disse calorosamente – Não é necessário levar seu papel. Lá tem a folha oficial que você poderá consultar.
          - Obrigada – sussurrei de volta.
          O presidente começou a cerimônia. Bem, eu iria precisar de um passatempo. Primeiro comecei contando quantas pessoas foram convidadas. Setenta e seis. Setenta e oito, um casal entrou atrasado. Eram... vinte e dois de cabelos loiros, dezenove grisalhos, vinte castanhos e dezesse...
          - ... Kate Johnsson!
          Senti um cutucão de papai e levantei com um sorriso no rosto. Queria ter tempo para saber quantas pessoas de cabelo preto vieram, mas agora eu tinha um dever. Caminhei até o alto microfone e olhei para os meninos e, facilmente, encontrei Paul. Ele abriu um sorriso, que devolvi, sentindo meu rosto esquentas um pouco. Olhei para as pessoas ali presentes e comecei:

             “Caros cidadãos, eu, Kate Bonne Johnsson, pronuncio completa a formação destes garotos que a partir de hoje, são os homens que protegerão nossos lares, nossa cidade, nossas vidas.”

             Neste momento, tudo estava anormalmente quieto. Tomei fôlego e continuei:

             “Eles sabem que é uma profissão de risco, sabem que isso podem ser o fim de suas vidas, mas é a vida deles pela de milhares. Eles sabem disso e têm o orgulho de o fazer! Agora saudemos em pé os formandos da Guarda de Manhattan!”

             Assim terminando, a multidão explodiu em palmas e gritos aos calouros, que respondia com sorrisos e pequenos acenos.
               Voltei ao meu lugar. Dramático demais, aquele discurso. Ficou meio... radical. Como se eles não tivessem vida, não gostei disso. O presidente se levantou e mais uma vez todos se calaram.
                - Muito obrigado pelo seu emocionante discurso, senhorita Johnsson! – disse ele.
                Abri meu sorriso ao ouvir isso, porém logo depois que ele virou para frente, lancei-lhe meu olhar mais frio. Aquele discurso era dele! Só o li.
                 - Agora podemos...
                 Agora podemos saber quantas pessoas de cabelos pretos (tingido ou não) vieram até aqui.
                 Algo chamou minha atenção. Uma pessoa totalmente de preto, com uma capa que deixava seu rosto nas sombras, havia se sentado na última fileira de cadeiras dispostas pelo pavilhão. Debaixo do capuz, eu enxergava dois olhos verde esmeralda me encarando fixamente. Me ocorreu um grande mal-estar e fiquei muito tonta. Senti um cutucão de papai em minhas costa novamente e me levantei, cambaleando um pouco. Era a hora da premiação dos garotos. Eles estavam vindo em uma fila totalmente organizada até o palco para poderem cumprimentar o presidente e receberem o certificado de honra.
            Tentei me recompor. Olhei novamente para o lugar onde o estranho havia sentado.
             Estava vazio.
             Um arrepio percorreu meu corpo. Algo nele (ou nela, não sei) realmente me fez sentir algo familiar, importante. Respirei uma, duas, três vezes... Recomponha-se! Ordenei a mim mesmo. Depois. Agora não.
             Sorria. Acene. Pareça alegre. Fui colocando meus pensamentos em ordem. Cumprimente. Agradeça. Sorria.
             Okay. Como se não bastassem os flashbacks, agora eu via estranhos que sumiam de repente. Uau. Agora só faltam fantasmas e vampiros.
              Todos os formandos já haviam recebido seus certificados quando voltei a prestar atenção, e acenavam alegremente para a pequena multidão, que respondiam entusiasticamente.
               Corri meus olhos pelos garotos. Jordan, River, Bryan, um novato que eu acho que se chamava James, e, lá atrás, estava Paul. Ele estava me encarando, como se eu pudesse desmaiar ou cair morta a qualquer momento.
                Acho que meio que me sentia assim.
                Acenei e o mandei um beijo, tentando mostrar que não havia nada de errado, mas Paul me conhecia bem demais para acreditar nisso. Ele inclinou levemente a cabeça e voltou a olhar a plateia.
                Papai colocou o braço em torno de minha cintura, me guiando para fora do palco enquanto o Presidente dizia o encerramento da formatura. Deixei-me levar. Queria sair dali o mais depressa possível. Todos que estavam no palco saiam em duas escadas laterais nos cantos do palco e saiam em uma trilha de grama baixa que ia diretamente até os carros, evitando a multidão, que ao se tratar de política, pode ser bem hostil.
                Paul se juntou a mim logo assim que saímos da vista do público. Ele tinha descido pelo outro lado do palco assim que o Presidente os dispensou. Paul ia para casa conosco. Fiquei empolgada. Iremos ter a tarde toda somente para nós. Papai ia sair, o que também era um alívio. Paul ficava extremamente... certinho na frente de meu pai. Era realmente melhor quando estávamos à sós.
                - Sr. Johnsson – Paul cumprimentou formalmente papai.
                - Ah, Sr. Lewis, como está? O que achou da formatura? – perguntou papai, notando sua presença.
                - Muito bem, senhor. A formatura foi adorável, obrigado – Paul responde com um sorriso.
                Já falei a Paul que o comportamento dele me lembra um antigo cavalheiro, todo formal, com modos e perfeito. Ele riu de minha suposição. Papai realmente gostava dele. Isso era bom. O amo demais para pensar na possibilidade de nos separarmos.
                Papai me soltou e se virou para ficar de frente para mim e me olhar docemente.
                - Kate, filha, por que você não vai com Paul para o carro enquanto acerto umas coisas com o Presidente, querida?
                - Claro, papai – disse sorrindo. Amava o jeitinho de meu pai, está claro o porquê de mamãe se apaixonar.
                Dei um passo para trás para me encostar em Paul e entrelacei meus dedos aos dele, mandei um beijo para meu pai e saímos devagar andando pela trilha de grama.
                - O que vamos fazer hoje? – perguntei.
                - O que quer fazer? – ele rebateu e, com sorriso, olhou para mim.
                - E aquilo que você prometeu me mostrar? – perguntei, olhando desconfiadamente para ele.
                -Ah, aquilo? – ele riu – Você estava curiosa para aquilo?
                - Claro!
                - Tem certeza?
                - Sim.
                - Absoluta?
                - É obvio.
                Levantei uma sobrancelha para ele e esperei. Paul soltou um suspiro e sorriu.
                - Vamos para casa – disse finalmente.
                - Mas... – tentei protestar.
                - Você verá – ele me interrompeu.
                Antes da cerimônia, Paul havia comentado algo sobre o qual gostaria de me mostrar, só que foi interrompido pelo meu pai, dizendo que havia dado a hora.
                Paul passou o braço por minhas costa se me abraçou forte. Estava revoltada, mas tentava refletir a calma reconfortante de Paul. O céu sem nenhuma nuvem permitia o sol bilhar no gramado à frente. Era um dia bonito.
                Nosso motorista, Alex, estava esperando papai apoiado na frente de nosso carro, conversando com o motorista do carro estacionado à frente, que, eu supunha ser do presidente.
                Alex ainda era jovem, magro usando seu “uniforme”, luvas impecavelmente brancas com um terno preto de linho que dava contraste a sua pele clara e cabelos escuros. Ainda estava cursando a faculdade, que papai bancava pelos pequenos serviços que fazia por nós, como dirigir nosso carro. Ele era gentil, gostava de jogar conversa fora. Paul o achava divertido.
                - Sr. Lewis! Srta. Johnsson! Onde está seu pai, garota? – disse ele olhando por cima de meus ombros. Os olhos castanho claro praticamente faiscando ao sol.
                - Papai está acertando algumas coisas com o presidente – respondi e dei de ombros – Alex, podemos esperar dentro do carro?
                - Claro, Srta. Johnsson.
                - Me chame de Kate, por favor. – Pedi. Não era a primeira vez.
                - Tudo bem Srta. Johnsson. Ops! Kate – ele respondeu prontamente, com um tom divertido.
                Ao ver o olhar crítico que lhe lancei, ele abriu um sorriso travesso enquanto abria a porta da parte de trás do carro, onde eu poderia ficar com Paul. Agradeci com um aceno de cabeça e me enfiei no carro com Paul atrás.
          Apoiei minha cabeça em seu ombro e deixei suas mãos em minha perna. Papai não demorou. Logo ele vinha correndo em direção ao carro.
          - Tudo certo, você aí? – perguntou ele ao entrar no carro meio ofegante.
          - Tudo – respondemos em coro com um sorriso.
          - Ótimo! – ele olhou para Alex, que havia acabado de entrar no carro – Oh, Alex, pode deixar os dois em casa e depois me levar até o Empire States, por favor?

          Alex assentiu e deu partida no carro. Naquele momento eu só podia imaginar o que era a surpresa que ele estava guardando. Com uma suave arrancada o carro saiu deslizando pelo asfalto.

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